quarta-feira, 2 de julho de 2008

É sim!!!

Crónica de Crónica de Pedro Mexia in Grande Reportagem, 06/03/2004:

"Uma amiga de longa data pediu-me que lhe corrigisse as vírgulas na tese de doutoramento. Com certeza que sim. Atirei-me, pois, às vírgulas. Mas confesso que não estava preparado. É que a tese - não sei como dizer isto - debruça-se sobre a problemática da cessão dos créditos. Confortavelmente esticado na minha caminha, de lápis na mão, dei por mim teletransportado ou, se preferirem, transplantado para a década de noventa do século passado. Essa tarde recordou-me outras tardes, árduas e infindáveis, há 12 ou 13 anos. Era, nessa época, aluno do curso de Direito. Saquei o canudo em 1995. E, depois disso, tenho mantido o silêncio. Mas agora, passado o período de nojo, aproveito para deixar aos meus leitores dois ou três avisos sobre o dito curso. Pois bem: trata-se da mais inconcebível, árida, macilenta e desprezível das criações humanas. Reparem que nem sequer me refiro ao Direito propriamente dito: sobre essa matéria a conivência dos juristas com tiranias sortidas e as obras completas do Kafka chegam e sobram. Quero agora evocar apenas o curso, aqules cinco penosos anos de colónia penal. Convém aliás explicar que o curso de Direito tem cinco anos não por exigências curriculares mas como forma de homenagem aos planos quinquenais soviéticos. A lógica de opressão, de dirigismo e de extermínio é a mesmíssima. Não vou agora aqui sumariar a minha experiência estudantil, a qual, aliás, foi aprazível a princípio e se tornou depois indiferente. Mas recordo-me bem do momento de viragem. Em pleno terceiro ano, o meu descontentamento veio ao de cima violentamente, como um almoço mal digerido. Estava numa aula de Direitos Reais. Estava aborrecido. Estava com sono. Escrevinhava coisas num caderno. E em cima do estrado, o monocórdico mestre dissertava sobre a «servidão de estilicídio». Eu explico: trata-se de garantir escoamento das águas quando um prédio vizinho não está a mais de cinco decímetros do outro. A minha vaga insatisfação com o curso tornou-se, nesse segundo, algo de muito mais agudo, como uma úlcera que rebenta. Eu não sabia o que queria fazer da minha vida; mas não era certamente estudar o escoamento de águas e a distância entre os prédios. Que se lixasse o estilicídio. Eu queria distância era do curso. Porque essa era a nossa faina. Engolíamos, como óleo de rícino, noções assim intragáveis durante dez infindáveis s emestres. Não apenas a acção de despejo, o IRS ou a recorribilidade do acto administrativo, assuntos minimamente perceptíveis, mas muitas e muitas bizarrias. A Constituição da Costa Rica. O inadimplemento culposo. A impugnação pauliana. A venda a retro. A ineptidão da petição inicial. As prescrições presuntivas. A substituição quase-pupilar. O fideicomisso. O anatocismo. A enfiteuse. Os vícios redibitórios. Os impedimentos dirimentes relativos. O contrato sinalagmático. O registo das sociedades em comandita. O benefício da excussão. E, claro, a cessão de créditos. É preciso ter um interesse desmesurado acerca das regras que regulam uma sociedade, em todos os seus nauseabundos detalhes, para estudar estas salgalhadas. E para aguentar os infindáveis casos entre o 'senhor A' e o 'senhor B', que vendiam um ao outro casas, se processavam, pediam licenças de uso e porte de arma, deixavam violas de gamba em usufruto, e por aí em diante. Por vezes iam mais longe: o usufruto era em Amesterdão, a arma de Poiares da Beira, o processo na Califórnia e a casa nas Comores. Quid juris?, perguntavam, sacanas, os lentes. Não sabíamos nem queríamos saber. Por esta altura, todos nós queríamos mais era que o senhor A e o senhor B se quilhassem. Manhãs e tardes a fio assisti a isto. Noites e noites a fio estudei isto. Vou ter olheiras para sempre por causa disto. Arruinei a minha caligrafia por causa disto. Sofri horrores de nervos e bexiga por causa disto. Aguentei o prof. Soares Martinez por causa disto. Comprei e sublinhei de capa a capa catrapácios de setecentas páginas sobre a pensão de alimentos por causa disto. Por isso vos digo, ó finalistas do liceu: não se metam nisso. Parafraseando Jaques Séguéla, diria que há actividades bem mais decentes. Como pianista num bordel."


Como estudante de Direito confirmo os factos retratados. Mas duvido que alguém tenha os cadernos mais "rabiscados" como eu, a Belinha e a Diana. Até um argumento para um filme para adultos nós co - escrevemos, envolvendo todo o pessoal docente e não docente da nossa faculdade. Pianista num bordel?? Hum... não sei!

2 comentários:

Anónimo disse...

Hmmm...mas sei eu!! vai ser o meu futuro! E bem mais digno do que aturar o fidel-come-isso....
Já agora os factos retrados são efectivamente verídicos....desmasiadamente verídicos..
É isso e macacos num centro comercial....e pessoas a matarem outras porque a sua diferente religião polui-lhes o ar.............. enfim

Unknown disse...

Olá "in dubias pros bacas"!!
Devo dizer que tens aqui um retrato claro da nossa miserável existência naqueles bancos quase podres da faculdade, onde até o grande D.D. largou umas bufas de desespero!

É claro que a isto acresce o sotaque do Casalta Nabais e as longas dissertações sobre "os burros dos juízes", os perdigotos do Nogueira Serens que davam banho à primeira fila, a "racionalizada realização judicativo-decisória do direito" ou a "apofântica relação hermenêutico-cognitiva" que o Pinto Bronze inventou e tu decoraste mas nem sabes bem o que quer dizer, ah claro, e as aulas do Rabin à beira de um colapso das vias respiratórias!!

Em resumo: os melhores tempos da minha vida! De que todos os dias me lembro com muita saudade...

Beijinhos a toos os meus "homens"!!